Um MCU em busca de rumo
US$ 180 milhões de orçamento, estreia doméstica de US$ 74 milhões e uma bilheteria mundial de US$ 382 milhões em poucas semanas. Para uma franquia acusada de cansaço criativo, isso soa como respiro. Thunderbolts* chega como o filme mais abertamente interessado no que acontece dentro da cabeça dos seus heróis — ou melhor, anti-heróis — e tenta provar que há vida no MCU quando a ação é usada para iluminar o drama, não para escondê-lo.
Dirigido por Jake Schreier — de Robot & Frank e Cidades de Papel —, o longa abandona a gincana de participações especiais que virou hábito recente no estúdio. Em vez disso, foca na química de um time disfuncional e no peso que cada um carrega. O asterisco do título não é enfeite: tem função na narrativa e conversa com a identidade da equipe, ainda que a explicação só faça sentido dentro do filme.
Para entender o contexto: o MCU vem de anos de turbulência, com críticas à fotografia escura, efeitos irregulares, excesso de ganchos para o “próximo capítulo” e roteiros reféns de um molde repetitivo. Thunderbolts* reconhece essa fadiga. Até brinca com ela. O primeiro ato traz a burocracia de sempre — investigações, acertos de contas, “o governo quer uma equipe controlável” —, mas o filme muda de marcha quando decide que a missão principal é enfrentar fantasmas pessoais, não um raio no céu.
No material de base, os Thunderbolts surgiram em 1997 como vilões reformados liderados por Baron Zemo, criados por Kurt Busiek e Mark Bagley. A versão do cinema adapta a ideia para um MCU pós-Blip: figuras quebradas tentando descobrir se ainda há espaço para elas. Em vez de Zemo como maestro, a engrenagem passa pela influência calculada de Valentina Allegra de Fontaine, a operadora política que prefere marionetes a heróis.
Resultado: o filme parece um projeto “híbrido” — espetáculo com sensibilidade de drama de personagens. Algo que o estúdio flertou em WandaVision e em trechos de Pantera Negra, mas raramente sustentou num longa inteiro. Aqui, Schreier encontra um centro emocional e segura a câmera quando precisa, sem medo de silêncios incômodos.

O filme: trama, temas e atuações
O time vem de diferentes rachaduras: Yelena Belova (Florence Pugh) tenta redescobrir quem é fora da sombra da Viúva Negra; Bucky Barnes (Sebastian Stan) encara a abstinência da violência como quem lida com vício; Red Guardian (David Harbour) quer provar que ainda serve a alguém que não seja seu próprio ego; Ghost (Hannah John-Kamen) vive em atrito entre o isolamento e a vontade de pertencer; Taskmaster luta com uma identidade sequestrada; e John Walker (Wyatt Russell) tem a cicatriz do homem que vestiu um símbolo grande demais.
A missão oficial — orquestrada por Valentina (Julia Louis-Dreyfus) — importa menos do que o que ela dispara. Em vez de uma corrida de set pieces, o roteiro escolhe uma trajetória de confronto interno: o que significa pedir ajuda, admitir limites e aceitar que força, sem rede de apoio, vira peso. O filme não glamouriza depressão. Mostra recaídas, impulsos autodestrutivos e a vergonha de “ser um problema” para os outros. E faz isso em cenas que parecem reuniões de equipe, mas soam como pequenos grupos de terapia improvisada.
Esse foco só funciona porque as atuações sustentam. Florence Pugh domina a tela sem pose de protagonista salvadora. Sua Yelena é ferida, sarcástica e muito humana; quando ela trava, a ação desacelera junto. David Harbour entrega uma combinação rara: é o alívio cômico e, ao mesmo tempo, o coração que mantém o grupo unido. A paternidade torta com Yelena rende momentos de afeto que não viram pieguice. Já Sebastian Stan trabalha na faixa da contenção — quase todo em subtexto — e ganha aqui um dos arcos mais coerentes do Bucky no cinema, com cenas em que a camaradagem com Red Guardian desmonta a casca do soldado perfeito.
Wyatt Russell volta com um John Walker menos previsível, preso entre ambição pessoal e necessidade de reconhecimento. Não há anjo instantâneo nem vilão de manual: ele oscila, e a narrativa aproveita essa instabilidade. Hannah John-Kamen, por sua vez, fica com menos tempo do que merecia, mas o filme é honesto sobre Ghost: alguém em quem o silêncio diz mais do que as falas. Taskmaster recebe mais camadas que em Viúva Negra — ainda que o roteiro evite reviravoltas barulhentas. E Julia Louis-Dreyfus usa seu timing cínico para fazer de Valentina um perigo frio: fraca como combatente, forte onde importa, atrás de mesas e dossiês.
Se o primeiro ato sinaliza que veremos “mais do mesmo” — com audiência no Congresso e reencontros burocráticos —, o segundo e o terceiro acham uma pulsação própria. As lutas são claras, pensadas para traduzir estado emocional: golpes que hesitam, duelos que parecem conversas muito atrasadas. Nada de sequência que é só barulho: cada embate muda alguém. E quando o filme cresce, cresce por dentro, não por cima.
Há problemas, claro. A fotografia escura em algumas passagens volta a atrapalhar, especialmente em interiores com pouca luz onde a paleta cinza engole detalhes de cenário e expressão. O filme não se rende ao verde fluorescente do CGI, mas ainda cai no filtro sombrio que virou muleta. Dito isso, a direção de Schreier compensa com escolhas de encenação: planos que valorizam rosto, pausa e respiração, algo raro no MCU recente.
Outro acerto foi abandonar a “caça ao cameo”. Nada de fila de estrelas entrando por cinco minutos para estourar a plateia e sumir. Essa contenção dá espaço para vínculos críveis e para que o humor nasça do convívio, não de piadas de referência. Há uma conversa entre Red Guardian e Bucky sobre os efeitos colaterais do soro do supersoldado que vale mais do que três cenas de fan service: ali, dois veteranos compartilham feridas, e a piada vira ponto de contato, não distração.
Tempo ajuda. Com 127 minutos, a montagem respira sem virar maratona. O filme escolhe o que mostrar e o que sugerir, confia no público e segura reviravoltas. E o tal asterisco do título, quando explicado, não é uma sacada vazia: amarra tema e identidade, dá nome à sensação de que esse grupo existe “com ressalvas” — asteriscos que cada um carrega.
Na prática industrial, os números contam. US$ 382 milhões globais, partindo de US$ 74 milhões na abertura doméstica de maio de 2025, indicam um boca a boca que segurou o fôlego após a curiosidade inicial. Não é a tempestade de antes de Endgame, mas está longe do alerta vermelho. Para a Marvel, significa que um projeto centrado em personagens pode entregar público e reputação — desde que a campanha prometa o que o filme cumpre: drama com espetáculo, não o contrário.
Por mais que a narrativa seja em grande parte autossuficiente, o final posiciona as peças para o que vem a seguir. A diferença é que, aqui, o gancho é consequência emocional, não panfleto de marketing. Os personagens saem do outro lado diferentes — e com desejos que naturalmente abrem portas. Esse cuidado faz toda a diferença quando se fala em “plano” de franquia.
O recorte de saúde mental merece destaque. Thunderbolts* não romantiza sofrimento nem trata terapia como piada. Mostra como pedir ajuda pode ser mais difícil do que enfrentar um exército, e como a vergonha isola. Ao colocar depressão e trauma no centro, o filme faz algo que o gênero costuma varrer para os cantos: dá linguagem a sintomas, hesitações e recaídas. Não resolve a vida de ninguém em um ato heroico. E quando alguém escorrega, a história não fecha com lição de moral; abre espaço para tentar de novo.
Isso não impede que parte da velha fórmula apareça. Há o vilão funcional que empurra a trama sem grande magnetismo, a cena de corredor que precisa existir porque “Marvel”, e a insistência em tons escuros como atalho para seriedade. Ainda assim, quando a estrutura chama, o filme responde com personalidade: a ação traduz o conflito interno, e os atores sustentam o olhar.
Em termos de legado no MCU, Thunderbolts* sugere um caminho: equipes menores, foco em dinâmica de grupo, antagonistas que operam mais no tabuleiro político do que no soco, e o reconhecimento de que danos psicológicos não se curam com uniforme novo. Não é um manifesto anti-espetáculo. É um lembrete de que explosão com propósito emociona mais do que dez sem lastro.
Se a pergunta era “para onde ir depois do cansaço?”, a resposta é contraintuitiva: para dentro. A Marvel não precisa de um multiverso mais barulhento, e sim de histórias que saibam por que existem. Thunderbolts* faz essa defesa com segurança, tropeça aqui e ali, mas sai do campo com algo raro na fase recente do estúdio: personagens que a gente reconhece quando a luz acende e os créditos sobem.